Evolução de paradigma das Políticas Públicas: da Dependência Química (DQ) para Problemas Relacionados ao Álcool e de outras Drogas (PRADs)
É da mais alta relevância e atualidade o artigo do Sr. Kofi Annan, ex-Secretário Geral da ONU, sobre nova abordagem das politicas públicas sobre drogas (O Globo, de 22/03/2016) no qual discorre a respeito de importantes avanços relativos ao complexo problema do consumo e tráfico de drogas. Essa nova abordagem constitui-se em um leque de iniciativas apoiadas em novos conceitos e paradigmas que apontam para novas perspectivas no enfrentamento deste grande problema que a maioria dos países vem enfrentando cada vez mais nas últimas décadas.
Não resta a menor dúvida quanto às dificuldades e à especial complexidade desse tema, além da falta de consenso, como é de costume, neste contexto. Contudo, de acordo com evidências e dados de pesquisas recentes, modelos ultrapassados, ainda fortemente baseados na visão repressiva e estigmatizada dos usuários de drogas, tem servido de base norteadora das políticas publicas implementadas, cujos resultados não foram os esperados e não tem sido satisfatórios até então. A própria ONU, na década de 90, final do Sec. XX, respaldada na opinião dos países-membros presentes na XX Assembleia Especial sobre Drogas, levantava a bandeira da “Guerra às Drogas” e lançava a campanha global “Um Mundo sem Drogas”, movimentos recebidos por todos como a forma de enfrentamento das drogas e de combate ao tráfico, ainda baseados na concepção que dominou todo o sec. XX. Logo que se constatou o insucesso dessas iniciativas, não só por diversos experts, mas também pelos próprios técnicos da ONU/OMS e das agências de controle, como a UNODC, e outras entidades, passou-se a observar mudanças da visão e da concepção do modo de enfrentamento dos problemas relacionados ao consumo de álcool e de outras drogas no mundo. É verdade que alguns países, como Holanda e Portugal, por exemplo, já vinham adotando postura mais focada na Saúde Pública e nas Politicas Públicas mais brandas com menos na repressão. Nesta época, em que já se podia constatar essas mudanças, no Brasil também podia-se ver incipiente movimentos que começavam a desenhar um novo patamar de compreensão, levando a revisão de conceitos estabelecidos. Em um artigo escrito naquela ocasião, manifestamos nossa opinião: “Guerra às Drogas, uma utopia anunciada”, (Boletim da ABRAD, Lima, 2002)). Assim, com uma visão mais ampliada e sistêmica dessa questão, Kofi Annan aponta para mudança de paradigmas ao tratar das evidências e de dados que apoiam as novas abordagens. Vale destacar aqui trechos do seu artigo:
“Devemos reforçar a política em seu objetivo original: proteger a saúde e bem-estar da Humanidade. Isso exige de nós darmos três passos críticos:
- Em primeiro lugar, precisamos descriminalizar o uso de drogas. O uso de drogas é prejudicial e reduzir seu malefício é tarefa do Sistema de Saúde Pública, não dos Tribunais de Justiça. Isso deve estar associado ao fortalecimento dos Serviços de Tratamento, especialmente nos países de baixa e média renda.
- Em segundo lugar, precisamos reconhecer que ter um mundo livre de drogas é uma ilusão, e priorizar, em vez disso, garantias de que elas causem menor mal possível para o menor número possível de pessoa.
- Em terceiro lugar, devemos investir na regulação legal e na educação das pessoas em vez da total repressão das drogas, que como já sabemos, não funcionou de modo efetivo”
Portanto, estas colocações convergem com a opinião de significativa parte de especialistas e estudiosos que, considerando a visão sistêmica, dentro do espectro bio-psico-social, e representam premissas fundamentais e necessária para uma nova abordagem com boa base na Saúde Pública e, naturalmente, na Saúde Mental (“é a evidência científica aliada à uma profunda preocupação com a Saúde e com os Direitos Humanos que devem nortear a política de drogas”, Kofi Annan) Neste sentido, levando em conta as evidências clínicas e científicas acumuladas em mais de 30 anos de experiência prática na saúde (Hospitais e Emergências, clinica e psiquiátrica, ambulatórios e consultórios,…) e na educação (coordenador de programa acadêmico de ensino e pesquisa sobre drogas), considerando também recentes colocações da ONU/OMS e da nova corrente de médicos americanos membros da American Society of Addiction Medicine (ASAM), passamos a utilizar o termo Problemas Relacionados ao consumo de Álcool e outras Drogas (PRADs) no lugar de Dependência Química (DQ), uma vez que o primeiro atende na prática os diversos níveis de envolvimento do consumo de álcool e de outras drogas: uso, abuso e/ou dependência, além de oferecer melhor articulação com as políticas públicas nos seus diversos âmbitos: atendimento clínico e psiquiátrico, situações de uso de risco (ambiente de trabalho e trânsito,…), prevenção primária e secundária, situações de conflito coma lei e violência, consumo por jovens/adolescentes e por mulheres grávidas, e outras situações em que a dependência química não esteja necessariamente constituída. Antes de ser mera questão de nomenclatura, justifica-se esse termo pelo fato de lidarmos, nos vários espaços e momentos. Assim, em face dos Programas de Atenção e de Prevenção desenvolvidos como políticas públicas ou privadas, pode-se considera a inclusão de pessoas nos atendimentos e cuidados de prevenção no ambiente de empresas, no trânsito e transportes de carga ou coletivos, em escolas e universidades, em comunidades, de forma a substanciar medidas propostas pelas Políticas Públicas que abrange não só os Dependentes Químicos (DQ), mas toda uma gama muito mais numerosa que é alvo de ações mais extensas e abrangentes que se constitui de consumo de baixo impacto e/ou de risco, além de casos de abusos frequentes, como é comum entre os jovens e as mulheres (happy-hour, binge drink, chopadas, festas, carnaval, futebol, etc,…). Nestes casos que representa a maior parte dos usuários, cerca de 90%, estamos lidando com o uso ou abuso e, eventualmente, com a dependência de álcool e de outras drogas (PRADs).
Outro aspecto a ser considerado na atualidade que influencia a adoção de “novas abordagens” e nos obriga a rever conceitos paradigmas estabelecidos em outras épocas, é o forte movimento que, há mais de 10 anos, vem sendo observado em muitos países no que concerne a relação sociocultural das drogas ilícitas frente às instituições públicas e à própria Sociedade. A descriminalização e mesmo liberação da maconha e, em alguns casos, de outras drogas, tem sido motivo de frequentes debates e de polêmicas, embora aos poucos esteja aumentando o número de países que vem adotando políticas públicas mais brandas. Diversos estados dos EUA, alguns países da Europa, o Uruguai, entre outros, implantaram políticas favoráveis neste sentido, diante do reconhecimento do relativo fracasso das campanhas antes defendidas pela ONU, nos anos 90 (“Guerra às Drogas”, “Um mundo sem Droga”,…), então, baseadas na ideia de combate ao tráfico e à violência forjadas no forte viés da repressão policial e mesmo militar. Exemplo disso foi a tentativa dos EUA, na década de 90, em acordo com o Governo da Colômbia e consentimento da ONU e da OEA, de erradicar plantações de cocaína no território colombiano. Cinco anos depois, relatório mostra que a experiência não alcançou os resultados esperados e, ainda, representou gastos de mais de 5.0 bilhões de dólares.
No Brasil, há movimentos em prol da liberação da maconha, tendo ocorrido importantes passeatas no Rio e São Paulo, e outras capitais, atraindo expressivo número de participantes. No Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, tem se mostrado simpático à admissibilidade de julgamento do processo descriminalização da maconha. Por outro lado, a ANVISA liberou o a importação da Maconha medicinal (canabidiol) sob prescrição médica. No ano 2000, organizamos, em parceria com o Ministério da Justiça e Consulado Geral dos EUA, curso intensivo sobre Programa de Justiça Terapêutica, equivalente ao Programa Drug Court americano, em que se procura reduzir a taxa de encarceramento motivado por crimes ligados às drogas. Nos EUA esse programa é adotado com sucesso há vários anos. Desse modo, constata-se que a tendência dos últimos anos tem sido de evoluir para abordagens menos repressivas para usuários e para os crimes de menor impacto ofensivo, mantendo, contudo, rigor no combate ao tráfico e à violência decorrente.
Portanto, as evidências e experiências acumuladas têm indicado a necessidade natural de revisão de posturas em relação à questão das drogas no mundo, como a própria ONU/OMS e outras agências pertinentes reconhecem. A adoção de nova conceituação de novos paradigmas surge como resultado das mudanças ocorridas ao longo das últimas décadas, na emblemática virada do século XX para o sec. XXI. E é natural que assim seja, pois a prática e as contribuições científicas das diversas pesquisas e estudos das várias áreas envolvidas com a complexa problemática das drogas (saúde, educação, segurança, economia, justiça, políticas públicas, etc…), substanciam essas mudanças de enfrentamento e justificam as novas abordagens. Cabe destacar a contribuição dos estudos da Neurociência nos importantes avanços alcançados para uma melhor compreensão da ação das drogas sobre o cérebro e para uma melhor orientação dos programas terapêuticos com maior efetividade. Embora se deva reconhecer as efetivas conquistas, muito ainda precisa ser feito nos diversos campos do conhecimento humano relativo aos problemas relacionados ao consumo de álcool e de outras drogas, tanto no tocante à Saúde Pública quanto às condições de paz Social e de Qualidade de Vida das pessoas.