“Infelizmente esse recente e grave acidente de trânsito em Copacabana com várias vítimas graves e uma fatal, se inscreve no nosso trágico cotidiano como mais um caso que, recebendo grande destaque na mídia, em poucos dias perderá espaço para outras notícias semelhantes sobre a violência nas estradas e outras “mais crônicas”.
Visto que esses tipos de tragédias de trânsito fazem parte dos noticiários de todos os dias, neste caso em especial, chamou atenção o fato de o motorista ter tido uma crise de epilepsia (sic) enquanto estava ao volante. Parece que os exames não apontaram para consumo de álcool ou de outras drogas por ocasião do acidente. É óbvio que mais uma vez a comoção e revolta de acidentes assim, ceifando vidas de pessoas, crianças, adultos e idosos, destroçando famílias, são inaceitáveis e traz mais uma vez a necessidade de se discutir com competência as falhas e negligências do sistema de cuidados e de segurança mínimos que o estado brasileiro (e a Sociedade civil, também) deixa a desejar quando nos defrontamos com essas tragédias do trânsito. É óbvio também que há décadas o número de mortos e feridos vítimas dos acidentes vem aumentando, fazendo com que hoje, em 2018, o Brasil esteja entre aqueles os países que mais matam nas estradas, o que é do conhecimento geral. Com cerca de 45 mil mortes por ano (23,5 mortes/100 mil habitantes), em números absolutos, ficamos em primeiro lugar (DataSUS/SIJM/Min. Da Saúde, Denatran, 2017). Apesar das leis, com elogiável destaque para a Lei nº 11.705/2008 (a Lei Seca), a taxa de mortalidade só vem aumentando ano a ano, ao contrário da maior parte dos principais países. Embora o Brasil tenha aderido, como signatário, à Campanha da ONU – Década Mundial de Segurança Viária/2011-2020, em 2020 deve apresentar resultados constrangedores. Neste contexto, vale considerar que um dos principais fatores de risco como causa de acidentes, não só no Brasil mas como na grande parte dos países, é o consumo de bebidas alcoólicas pelos motorista: a imprensa e os relatórios das autoridades de trânsito são contundentes nesta constatação. Naturalmente, são causa importantes de acidentes o excesso de velocidade, o desrespeito às regras trânsito, a sinalização deficiente e as más condições de conservação das estradas, mas o álcool, e em menor escala, outras drogas, tem relação com quase metade dos acidentes. Sendo que nos fins de semana mais da metade dos acidentes, cerca de 60%, estão relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas, inclusive cerveja, considerada pelos jovens, enganosamente, como mais leve do que as outras.
Assim, causa certa preocupação e estranheza, quando neste acidente de Copacabana surge um inusitado fator de o motorista ter sido acometido de crise convulsiva, um sintoma de epilepsia, doença relativamente comum, enquanto dirigia. Sem minimizar o sofrimento causado a tantos por mais essa fatalidade do trânsito e nem desconsiderar o fato do maior controle de condições médicas restritivas na avaliação de fatores de riscos relacionados à algumas condições no que tange a segurança viária, nos parece descabida a ênfase dada ao evento de o motorista ter sido acometido de episódio clínico-neurológico de falha de consciência relacionado com o provável quadro de epilepsia. Por outro lado, quando, simplesmente, comparamos, de acordo com registros de acidentes de trânsito no tocante à causalidade dos fatores de risco (Denatran, DataSUS/SIM,…), o número de eventos com motoristas envolvidos em acidentes graves sob efeito de álcool com o número de episódios tipo crise convulsiva, nos deparamos com a falta de cuidado na divulgação e ênfase dada nesse caso sem melhor contextualização e esclarecimentos ao público. Enquanto a freqüência de motoristas envolvidos em acidentes com vítimas fatais sob efeito de álcool é de quase de 50%, ou seja, perto de 20 mil acidentes, no caso de motoristas que se envolveram em acidentes com vítimas fatais em decorrência de episódio de convulsão, a conferir pelos dados oficiais, poder-se-ia estimar em torno de 5 a 10 casos (?!), ou seja, de 0,01 a 0,02%, ficando 99,98% dos casos decorrentes de outras causas, sobretudo consumo de álcool. Contudo, não deixa de ser, da mesma maneira, uma enorme tragédia.
Neste sentido, como médico-neurologista e especialista em Medicina de Tráfego, assim como tantos outros médicos clínicos, cardiologistas, e outros especialistas, que tratam de enfermidades do tipo cardiopatia, hipertensão arterial, diabetes, idosos (ou não) com sintomas de insuficiência de vascularização cerebral, de pessoas em uso de medicamentos psicoativos, etc., além de casos de epilepsia, vejo nesta hora a relevante oportunidade de chamar a atenção para melhor preparo e capacitação do setor de controle e avaliação das condições clínicas e neuropsicológicas dos motoristas, iniciantes ou na renovação da CNH, sob responsabilidade dos Detrans. O médico, especialista em Medicina do Tráfego, ao avaliar as condições de saúde para obtenção da carteira, deverá fazer um exame adequado e pertinente para a condição de dirigir com segurança, sendo que em casos de constatação de condições clínicas especiais, deverá aprofundar no exame para liberar laudo técnico competente. Sobre aspecto administrativo dos pontos e da cassação da carteira o Detran tem sua parcela de responsabilidade na fiscalização, sobretudo, no caso deste motorista que tinha antecedentes policiais.
Portanto, não é demais insistir que é oportuno discutir a questão do papel do médico especialista na avaliação para a concessão da CNH e sua verdadeira dimensão baseada nas evidências e estudo de situações de risco. Como exemplo, podemos citar deficiência no melhor conhecimento sobre mecanismos metabólicos e neurofisiológicos envolvendo a ação das drogas sobre no organismo e no cérebro decorrentes do consumo de álcool e de outras drogas. A respeito dessa questão, podemos citar certa confusão e polêmica relativas ao exame do cabelo que não identifica uso do álcool e não se aplica aos acidentes, evento central da segurança viária. Assim, os médicos com formação em Medicina de Tráfego, especialidade reconhecida há vários anos pelo CFM e CRM, têm papel de fundamental importância na composição da equipe de Saúde especializada dos Detrans, ao lado dos psicólogos e de outros profissionais. Por fim, cabe ressaltar que a Década Mundial de Segurança Viária, 2011-2020, campanha promovida pela ONU, deve servir para todos nós envolvidos com tráfego e transportes, profissionais deste segmento, autoridades públicas, parlamentares, juristas, governantes e a sociedade em geral, como especial momento para se aprofundar e discutir essa inadiável questão que representa uma das maiores causas de mortalidade que são os acidentes de trânsito no Brasil.